quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Pelé russo

Uma das paixões comuns aos brasileiros e aos russos é o famoso esporte bretão, o futebol. E se o Brasil é mundialmente conhecido por seus lendários futebolistas - de Pelé a Ronaldo, de Garrincha a Romário -, a Rússia é em geral associada, no cenário esportivo, a modalidades individuais de alto rendimento, como a ginástica olímpica, o atletismo etc. Se o assunto é o belo jogo, é comum a lembrança dos lendários arqueiros soviéticos, como Rinat Dassáiev ou Liev Iáshin, ou do glorioso Dinamo de Kiev.

Porém, é possível que na Rússia os aficionados por futebol considerem outro nome como a maior lenda do esporte em seu país: Eduard Streltsov. Curiosamente, talvez menos pelo seu papel fundamental na conquista da medalha de ouro nas Olimpíadas de Melbourne em 1956 do que pelos subsequentes escândalos em que acabou se envolvendo. Episódios que levaram a sua controversa prisão.

Streltsov nasceu três anos antes de Pelé, em julho de 1937. É evidente que seu atual epíteto, "o Pelé russo", foi cunhado posteriormente, na esteira do imenso êxito do lendário Edson. As semelhanças na biografia, porém, justificam a comparação: Streltsov estreou pela seleção soviética aos 17 anos, marcando três dos seis gols de sua equipe no amistoso contra a Suécia. No ano seguinte, teve participação fundamental na heroica vitória da URSS sobre a Bulgária nas semi-finais dos Jogos Olímpicos: com nove homens e perdendo por um a zero na prorrogação, os soviéticos viraram a partida com um gol e uma assistência de Streltsov. O atacante não jogaria a final contra a Iugoslávia, vencida pelos soviéticos, mas seria considerado um dos melhores jogadores do mundo nas temporadas de 1956 e 1957 pela imprensa ocidental e ainda levaria o pequeno Torpedo de Moscou ao vice-campeonato nacional.

Streltsov tornou-se, desta forma, a grande esperança soviética para a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. A equipe já era vista como uma das grandes forças do futebol mundial de então, e com o surgimento do fenomenal garoto, muitos passaram a considerar a URSS como a grande favorita ao caneco. Mas nem tudo eram flores. Não se pode afirmar que atletas de renome enfrentando problemas com álcool e mulheres no mundo do futebol seja exatamente uma novidade: Streltsov foi acusado de estuprar a jovem Marina Lebedeva, de vinte anos, às vésperas do Mundial. O atacante foi preso e condenado a doze anos de prisão, dos quais cumpriu cinco. Muitos consideram o episódio uma armação do Politburo, já que Streltsov havia se recusado, pouco antes, a se casar com a filha de uma proeminente integrante do Partido. Ademais, parecia havia o temor na cúpula do governo soviético de que Streltsov pudesse desertar para a França, já que diversos clubes daquele país haviam manifestado interessante em contar com o talento daquele que poderia ter se tornado o "Pelé russo".

Streltsov voltaria a jogar pela seleção e pelo Torpedo, que conduziria ao inédito campeonato nacional de 1965 e ao título da Copa da URSS em 1968. Mas jamais disputaria novamente um jogo de Copa do Mundo, embora tenha voltado a vestir a camisa alvirrubra da seleção por um curto período. Aposentou-se em 1970 e faleceu devido a um câncer na garganta, em Moscou, em julho de 1990, um dia após completar 53 anos. Em 2006, o COI alterou retroativamente a regra que determinava que somente atletas que tivessem disputado a final recebessem a medalha. Cinquenta anos depois, Streltsov recebia postumamente seu ouro olímpico.

Streltsov, assim como sua pátria soviética, foi uma promessa não cumprida. Sua amarga história lembra antes a de um Garrincha que a de um Pelé. Mané, ao menos, sentiu o sabor de vencer duas Copas. Em tempo: na campanha de 1958, os soviéticos foram derrotados pelo Brasil por dois a zero na primeira fase, mas se classificaram para a sequência do campeonato ao derrotar por um a zero a Inglaterra em jogo desempate. Nas quartas-de-final, porém, derrota por dois a zero para a Suécia, a mesma que haviam derrotado três anos antes por sonoros seis a zero. Com três de Streltsov.

Segue abaixo a primeira parte do documentário "Área para o centro do ataque", do canal 1 da Rússia. Infelizmente não achei com legendas nem em inglês.



Existem ainda livros sobre a vida de Eduard Streltsov. Alguns links:

Donne, vodka e gulag, do jornalista italiano Mario Iaria.

Football against the enemy, do britânico Simon Kuper (apenas um capítulo sobre o atacante russo).

Стрельцов: Человек без локтей (Streltsov: o homem sem cotovelos), de Aleksandr Nilin.

Existe ainda o documentário "Communism and Football", da BBC. Esse, ao que nos parece, não existe em DVD no Brasil.

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